Fornecedor diz que alterou certificado de ingrediente usado em petisco para ‘manter relacionamento com cliente’; mais de 100 cães foram intoxicados

O dono da fornecedora de propilenoglicol A&D Química, em Arujá, na Grande São Paulo, uma das investigadas no caso de contaminação de petiscos para cachorros que causou mais de cem internações e mortes de pets no país, afirmou em um depoimento que alterou o certificado da matéria-prima usada na produção de alimentos para “manter bom relacionamento com cliente”.

O g1 teve acesso ao depoimento do dono da fornecedora investigada.

A A&D Química forneceu o composto químico para a TecnoClean, que, por sua vez, revendeu para Bassar, Petitos, Bella Donna Produtos Naturais, FVO – Brasília Indústria, Peppy Pet e Upper Dog.

Todas as citadas tiveram que fazer recall de lotes de produtos.

Segundo investigação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a causa da contaminação foi a incorreta identificação de lotes de monoetilenoglicol — uma substância que tem seu uso proibido na produção de alimentos para humanos e animais — como se fossem lotes de propilenoglicol.

O monoetilenoglicol é uma substância tóxica, normalmente usada para resfriar motores ou radiadores de carros. Por isso, não pode ser ingerido. Ele altera o metabolismo das membranas celulares, causando, desde sintomas agudos de vômito, diarreia, chegando até os rins, que são os mais afetados. Chegando até a sintomas neurológicos seis dias após a ingestão.

Ao menos 11 empresas tiveram contato com o propilenoglicol com suspeita de contaminação.

O delegado responsável pelo caso em Guarulhos, na Grande São Paulo, Vilson Genestretti, ouviu representantes das empresas que compram e revendem a matéria-prima e aguarda laudos periciais, mas não comentou detalhes. A cadeia de contaminação ainda é investigada e não se sabe a origem do produto.

 — Foto: Arte/g1

— Foto: Arte/g1

De acordo com informações obtidas pelo g1, um representante da A&D Química, Júlio César Barros de Paula, alega que não fabrica o produto, mas distribui matérias-primas como o propilenoglicol.

Júlio afirma que a dona da empresa é sua esposa, Alice Aparecida Duarte Barros.

A A&D Química revendeu o produto para a Tecnoclean com “certificados de qualidade”. O propilenoglicol da A&D Química era comprado da empresa Crystal, outra distribuidora de produtos químicos para limpeza também da Grande São Paulo (veja ordem de venda entre as distribuidoras na arte acima).

No entanto, Júlio pontuou, durante as investigações, que o produto vendido à Tecnoclean deveria ser destinado apenas para cosméticos e produtos de limpeza por não ter o grau de pureza exigido e permitido para itens alimentícios, que é conhecido como “grau USP”. A Tecnoclean, no entanto, contesta a versão (veja mais abaixo).

O grau USP atesta que a substância está pura o suficiente para ser usada em itens alimentícios, permitindo que o produto seja ingerido por humanos ou animais.

O empresário alegou que, em 6 de setembro, recebeu uma ligação de uma funcionária da Tecnoclean. Na ligação, ela teria pedido que fosse escrito na frente dos certificados a identificação “grau USP”. Anteriormente, conforme apurou o g1, eles estavam identificados apenas como “propilenoglicol”.

De acordo com o relato, o fornecedor resolveu atender o pedido para “manter o bom relacionamento com o cliente” e alterou os certificados solicitados, ou seja, incluiu o grau estabelecido para itens alimentícios nos laudos apesar de os produtos não terem “grau USP”.

Júlio entregou o celular para ser periciado à polícia, porém, o laudo ainda não foi concluído. A esposa dele e proprietária da empresa, Alice Duarte, detalhou, segundo apurado pelo g1, que as negociações com a Tecnoclean começaram em dezembro de 2021 com uma funcionária que não está mais na A&D.

Já um representante da Tecnoclean, Luiz Fernando, afirmou nas investigações que “toda a negociação com A&D foi feita com base no grau USP”.

Segundo apurado, Luiz declarou durante as investigações que estava ao lado de uma funcionária quando ela recebeu uma ligação da A&D Química para negociar o lote de propilenoglicol e pôde, então, ouvir a conversa, que estava no viva-voz.

Durante o telefonema, o representante da A&D afirmou que o propilenoglicol negociado “serviria até para ração de boi”.

A funcionária da Tecnoclean, que participou da negociação, entregou o celular para perícia em uma delegacia em Minas Gerais.

Informações obtidas pelo g1 apontam que ela se defendeu das acusações. Segundo a funcionária, ela pediu o reenvio de certificados com a intenção de compará-los com os encaminhados anteriormente, porém, não foi solicitada a suposta adulteração.

Orientada por chefes

Segundo a apuração, uma ex-colaboradora da A&D Química também afirmou que foi uma das responsáveis pelo início das negociações com a Tecnoclean.

A ex-funcionária ressaltou que, segundo os ex-chefes, Júlio e Alice, o propilenoglicol vendido pela A&D era “grau USP” , mas que ele não poderia ser vendido para o ramo alimentício. Ela teria alertado a Tecnoclean de que não deveria ser feito o repasse para empresas de alimentos.

Todas as versões e conversas apresentadas por aplicativos de mensagens serão analisadas pela Polícia Civil.

Sobre a investigação referente à intoxicação de cachorros que tramita pela Delegacia Especializada em Defesa do Consumidor, em Minas Gerais, estão confirmadas 14 mortes em Belo Horizonte e outras 4 no interior do estado, com o total de 42 intercorrências envolvendo cães. A polícia mineira aguarda a conclusão dos laudos periciais para a conclusão do inquérito policial.

Troca de lotes

 

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que também apura a situação, informou ao g1 que as investigações demonstram que a causa foi a incorreta identificação de lotes de monoetilenoglicol — uma substância que tem seu uso proibido na produção de alimentos para humanos e animais — como se fossem lotes de propilenoglicol, a substância que tem seu uso permitido em alimentação animal e serve para deixar o produto com aspecto molhado.

Segundo a Anvisa, o propilenoglicol “é um aditivo alimentar autorizado pela Anvisa para uso em 21 categorias de alimentos para consumo humano, com quatro funções: umectante, agente carreador, estabilizante e glaceante”.

“A incorreção desta identificação levou ao uso de produto extremamente tóxico na fabricação de petiscos, em quantidades muito acima das doses que são consideradas fatais”, disse o ministério, em nota.

G1 MG