Famílias inteiras vão para as ruas por falta de dinheiro.
O derretimento do poder de compra do brasileiro tem surtido um efeito que ocupa praças, calçadas e baixios de viadutos nas médias e grandes cidades. Com a inflação no encalço – o índice medido em 2021 chegou a 10,42% –, é visível o aumento no número de pessoas morando nas ruas – apesar de a Prefeitura de Belo Horizonte não ter números oficiais. Nas ruas, há também uma mudança no perfil de quem só tem uma barraca ou marquise para passar a noite.
A elevação no custo de vida tem empurrado para as ruas famílias com crianças e até mesmo quem sempre teve um local seguro e limpo para dormir. São pessoas que tinham emprego e moradia, mas se viram sem poder pagar contas como aluguel, gás de cozinha e energia elétrica. O fenômeno é sentido por quem frequenta a rede de assistência social a pessoas em situação de vulnerabilidade. O ativista Rafael Fonseca é um deles. “É gente que já havia superado a pobreza e volta a passar por essa situação de novo. É desmotivante”, reclama o integrante do Comitê Municipal da População de Rua. Para ele, a demanda é tão crescente que tem estrangulado as possibilidades de atendimento ofertadas pelo poder público municipal. “A falta de acolhimento está visível”, pontua.
Esse pavor tem batido à porta de Gleiciane Gomes. Com o dinheiro encurtando cada vez mais, a diarista passou a temer que acabe retornando às ruas. Ela recebe auxílio do Bolsa Moradia, programa da prefeitura que repassa R$ 500 mensais a famílias carentes para despesas com habitação. Conseguir pagar todas as contas do mês, no entanto, tem sido raro na casa dela. “Alimento está muito caro. Tem dia que tem, e dia que não tem”, reclama. Há quase 12 anos, Gleiciane mora numa casa no bairro Taquaril, região Leste da capital, mas, com a inflação roendo cada vez mais o poder de compra, ela não sabe até quando vai conseguir pagar as despesas integralmente. “As coisas estão muito caras. Tenho medo de ter que voltar a morar na rua e até perder meus filhos para o juizado”, desabafa.
O benefício que garante moradia digna a Gleiciane tem tido aumento expressivo de demanda no último ano. Segundo dados da Prefeitura de Belo Horizonte, em 2021 foi registrado um aumento de 42% na inclusão de beneficiários, com a adesão de mais 424 famílias, passando de 1.010 para 1.434 residências atendidas. A administração municipal afirma que a ampliação consumiu investimento de R$ 12 milhões, mas ainda existe uma fila de espera com 184 famílias aguardando convocação, o que se pretende zerar até abril deste ano. O programa é gerido pela Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel) e atende pessoas em situação de rua.
Subnotificação é um dos problemas, dizem especialistas
A questão da moradia em Belo Horizonte é tão dramática que nem mesmo a dimensão do problema é exata – ao menos aos olhos do poder público. Desde antes da pandemia, a prefeitura da capital divulga que o número de pessoas em situação de rua seja algo em torno de 4.600 pessoas. Mais de dois anos se passaram e o balanço do Executivo continua o mesmo. Especialistas, pesquisadores e ativistas discordam frontalmente. Para eles, os dados não traduzem o que o belo-horizontino tem presenciado nas ruas: o perceptível aumento de gente morando em praças, marquises e calçadas, montando barracas e revirando lixeiras em busca de algo para comer ou vender.
Nas contas de Samuel Rodrigues, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua em Minas Gerais, já seriam aproximadamente 12 mil pessoas em situação de rua na capital mineira. “A gente percebe o aumento da população de rua andando pela cidade”, afirma. Ele explica que a pandemia alargou ainda mais a distância entre as pessoas que moram na rua e o restante da sociedade. “Essa população ficou isolada”, diz. E confirma que a crise financeira galopante, anexa à pandemia, tem levado às ruas trabalhadores que tinham emprego, mas foram demitidos. “Os abrigos e espaços de assistência estão abarrotados. Toda a rede que atende a população de rua está estrangulada”, completou. Consultada, a prefeitura afirmou que está contratando um mapeamento sobre essa faixa da população.
Referência em estudos sobre população de rua, o programa Polos de Cidadania, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estima que sejam 8.374 pessoas em situação de rua na capital mineira, quase o dobro do calculado pela administração municipal. O professor Wellington Migliari, pesquisador do grupo, afirma que está convencido de que existe subnotificação nos dados oficiais. Ele também reclama da falta de transparência do Executivo. “A prefeitura omite os métodos utilizados sobre como coletou esses números”, questiona.
Fazer a assistência chegar nas regiões fora da zona central da capital é outro ponto no qual a prefeitura tem falhado. Rodrigues lembra da região do Barreiro, por exemplo, onde moram mais de 300 mil pessoas. Por ali, não existe nenhum abrigo público. “Sem habitação e renda não tem como promover o sujeito. Sem isso, dificilmente vamos superar esse problema”, avalia. A implementação de uma política territorial mais estruturada é a necessidade apontada por Rafael Fonseca, do Comitê Municipal da População de Rua. “Esses são lugares onde a política não chega. Não é somente assistência, envolve saúde, educação, geração de emprego e renda, senão a conta não fecha”, reflete. Para ele, a pandemia veio escancarar uma realidade que não é de agora – a ausência de políticas públicas para esse público. “Não adianta tirar a pessoa da rua, tem que tirar a rua da pessoa”, afirma.
A necessidade de descentralizar a oferta de serviços também é citada pelo vereador Bráulio Lara (Novo). Ele integra o grupo de trabalho criado na Câmara de Vereadores para tratar do assunto. O parlamentar acredita que não falte dinheiro para as políticas públicas do setor, mas é preciso aprimoramentos urgentes. “Famílias inteiras estão chegando nas ruas. A cidade está largada nesse sentido”, avalia. Segundo ele, esse problema estaria criando outro: uma crise no comércio da região central, com várias lojas fechando. O vereador também discorda da concentração de doações da rede de caridade na região Centro-Sul. Para ele, seria mais eficiente organizar e distribuir os donativos para outros cantos. “Isso evitaria a concentração (de doações) em um ponto e a falta em outros”, sugere.
BH tem rede ampliada com seis novos refúgios
Belo Horizonte deve ganhar, nos próximos meses, seis novos abrigos para receber pessoas em situação de rua. A previsão era que a abertura ocorresse até fevereiro, mas a prefeitura mudou de planos e agora promete liberar os locais até junho deste ano. Atualmente, a cidade conta com 16 unidades do tipo.
Entre os novos abrigos, serão construídas unidades exclusivas para segmentos específicos da população em condições de maior vulnerabilidade: um para gestantes ou puérperas e seus bebês, outro para pessoas com deficiência, e um terceiro que irá atender a população LGBTQIA+.
O valor total dos investimentos é de R$ 5,2 milhões. Também será criado um novo Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro Pop) – atualmente BH possui três unidades do serviço.
São abrigos como esse que se apresentam como a única alternativa para diversas famílias que moram nas ruas. O casal Alessandro Wilton e Valdiana Fagundes foram aceitos há 5 meses no Abrigo Granja de Freitas, que fica no bairro de mesmo nome, na região Leste da cidade. Foi um alívio para a dupla, que exibe com alegria o pequeno Caio, bebê de 7 meses de idade. Apesar de agora terem onde morar, ter o que comer e vestir é outra incerteza diária para o trio. “O botijão de gás custa R$ 130, então tenho conseguido sopinha para o neném na rua”, diz Wilton, desempregado há 4 anos. Para Valdiana, seu maior tormento é ter que voltar a morar ao relento, realidade que ela vivenciou durante sete anos. “Tenho medo de voltar para a rua. É muito ruim, sente frio e agora tenho criança. Espero que meu marido arrume um emprego”, deseja.
JORNAL O TEMPO
Comentários estão fechados.