Jovem autista perde a vaga por causa de banca da UFMG: ‘me senti num tribunal’.

Um grupo de pessoas rodeava Brenda*, de 19 anos, dentro de uma das salas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Fronte à jovem, havia uma câmera, que filmava o depoimento. A menina, que é do interior do Estado, e estava sentada em uma cadeira disposta no centro do espaço, compareceu ao campus no início de março para a Banca de Verificação e Validação (BVV) que compõe o processo de preenchimento das vagas para Pessoas com Deficiência (PcD), que têm cotas garantidas por lei desde 2017.

Brenda é formalmente diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e, no dia, apresentou laudos psiquiátricos que comprovam a condição, que é incluída na lista de deficiências. O que era para ser apenas um procedimento de praxe, contudo, nas palavras da jovem, se transformou em um processo traumático, que culminou no indeferimento da matrícula dela – mesmo com nota no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para entrada pelo Sistema Seleção Unificada (SISU) em outras categorias de reserva de vagas.

“Eu não sabia como ia ser, nunca tinha ido à UFMG. Então, uma amiga foi comigo. Eu tenho dificuldade com experiências novas. Quando cheguei na banca, me senti como num tribunal. Eu estava sentada em uma cadeira no meio da sala, com quatro ou cinco moças e uma câmera. Uma moça fazia as perguntas e, depois de pedir dados cadastrais, começou a fazer perguntas do questionário. Senti que ela estava questionando minha deficiência, como se ela quisesse que eu caísse em alguma mentira”, narra a jovem à reportagem.

Quando Brenda percebeu, disse à pessoa que compunha a banca que ela estava com o laudo médico e poderia ter acesso. A menina relata que a banca informou não ter o documento no momento da entrevista. “A sorte que eu tive foi de estar com ele impresso”, completa. Pouco depois do fim da entrevista, a estudante diz ter sofrido uma crise de ansiedade e chorado muito. Um segurança a acolheu.

Em nota, a UFMG afirma que não comenta casos específicos, mas que “a Lei 13.146 também estabelece, em seu primeiro parágrafo do Artigo 2, os critérios para considerar a pessoa com deficiência e a necessidade de uma avaliação ‘biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar’ que compõe a Banca de Verificação e Validação (BVV).”

Em suma, a universidade, como explicou Regina Céli Fonseca Ribeiro, diretora adjunta do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão, avalia as particularidades e singularidades das PcD que concorrem por uma vaga. O TEA, “por estar inserida dentro de um espectro, não necessariamente a dificuldade é visível, as dificuldades, ainda que exemplificadas, vão depender de cada um, mesmo que esteja num determinado espectro, cada um vai ter uma demanda diferente da do outro”, comenta a professora.

O objetivo da banca, completa, é “identificar em que medida o encontro entre a deficiência e as barreiras socioambientais interferem no desempenho das atividades da vida diária (AVD) e na participação social; a necessidade de acessibilidade, tecnologia assistiva ou adaptação; e a demanda de apoio de terceiros para realização das atividades do dia a dia e acadêmicas, que podem impactar em seu percurso acadêmico no ambiente universitário”.

A experiência narrada por Brenda, contudo, entra em contraste com a legislação brasileira (veja os destaques da lei no fim da reportagem). “Fizeram uma avaliação deles. Eles não podem fazer uma própria avaliação. O que está escrito nos meus dois lados é que eu possuo essa dificuldade. O parecer deles deu a entender que avaliaram que, ou eu não era autista, ou não era ‘autista o suficiente’ [para a vaga]. [Na banca], não tinha uma pessoa sequer com deficiência. É uma experiência muito traumática, muito violenta”, continua.

No fim de março, cerca de duas semanas após a entrevista, a matrícula da jovem foi indeferida em definitivo e, ela, notificada por e-mail. Brenda entrou em desespero. A estudante havia começado a frequentar as aulas e foi acolhida por professores e alunos na UFMG. Não existia, de acordo com ela, perspectiva de que ela não fosse aprovada para a vaga, mesmo com a experiência na banca. Ela conseguiu apoio de algumas pessoas para escrever um recurso contra a decisão e, conforme todos os envolvidos, as chances de que ela perdesse a vaga eram quase nulas.

“Não consigo nem pisar lá mais. Não me deram informação nenhuma depois de pedir o recurso. Estou na dúvida se presto vestibular de novo. Foi horrível. Todo o sistema, apesar de, no ENEM, ter sido aprovada como PcD e tive um tempo a mais, tudo que tinha direito, fiz a prova sozinha etc. Mesmo assim, é muito desgastante. Demorei um tempo para me recuperar [do Exame]. Eu queria mostrar que é possível uma pessoa autista na UFMG. Eu tinha nota para passar em outras modalidades de cotas, como por renda, ou raça. Ter que passar isso tudo…Vai ser difícil. Eu só quero poder estudar”, completa Brenda.

“A universidade está cometendo um crime”

Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Minas Gerais, Michelly Caroline afirma que o processo adotado pela UFMG é, além de “extremamente capacitista”, “um crime” e contrário ao que rege a legislação brasileira. Citando os mesmos instrumentos legais que a instituição (veja nota na íntegra ao fim da reportagem), a advogada explica que não é papel da UFMG decidir quem ou “quanto” deficiente é um candidato.

“Os critérios de avaliação da deficiência não tiram a deficiência objetiva da pessoa. A banca usou a avaliação de maneira inadequada. Ela deve funcionar como conferência de direitos, não para retirada de direitos. Essa banca foi capacitista, tem inadequação e não entende como funciona a avaliação. Como comissão, vamos encaminhar uma recomendação para a UFMG para que entenda a legislação. Vamos mandar um ofício para a defensoria publica especializada, que vai atuar no caso [de Brenda]”, pontua. “Essa universidade está cometendo um crime. E pode, na via cível, ter que pagar uma indenização [à aluna] em razão dos danos que ela pode ter sofrido em razão do constrangimento passado”, completa Michelly.

*Nome fictício usado para preservar a identidade da estudante

Nota da UFMG na íntegra:

A reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior foi instituída pela Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, com o objetivo de corrigir desigualdades históricas presentes na sociedade brasileira. A lei determina que 50% das vagas dos processos seletivos de graduação devem ser reservadas para estudantes de escolas públicas, e entre esses, negros, pretos, pardos e indígenas.

Em 2017, passou também a contemplar pessoas com deficiência. Na UFMG, o primeiro edital de reserva de vagas que incluiu pessoas com deficiência foi publicado no primeiro período letivo de 2018. Desde então, até o segundo período letivo de 2021, 562 candidatos que requisitaram vagas por meio dessa modalidade foram aprovados e entraram para a Universidade. As pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) também são contempladas pela reserva de vagas.

Na UFMG, a reserva de vagas integra uma consistente política de ações afirmativas além de programas de inclusão destinados a promover grupos socialmente discriminados, promove práticas acadêmicas de acolhimento, atenção e apoio aos estudantes em suas necessidades, em seu aproveitamento acadêmico e no enriquecimento de sua permanência na instituição.

A UFMG tem adotado medidas para aperfeiçoar os procedimentos para atender à Lei das Cotas para garantir a lisura do processo. Em relação às pessoas com deficiência, a Universidade se apoia também na Lei 13.146, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, publicada em 6 de julho de 2015, “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.

A Lei 13.146 também estabelece, em seu primeiro parágrafo do Artigo 2, os critérios para considerar a pessoa com deficiência e a necessidade de uma avaliação “biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar” que compõe a Banca de Verificação e Validação (BVV). Na Universidade, essa avaliação é realizada, sobretudo, para identificar em que medida o encontro entre a deficiência e as barreiras sócio ambientais interferem no desempenho das atividades da vida diária (AVD) e na participação social; a necessidade de acessibilidade, tecnologia assistiva ou adaptação; e a demanda de apoio de terceiros para realização das atividades do dia a dia e acadêmicas, que podem impactar em seu percurso acadêmico no ambiente universitário.

A UFMG reitera que a política de cotas tem o objetivo de democratizar o acesso da população brasileira à universidade pública e que cabe à instituição estabelecer e zelar pelo cumprimento de procedimentos rigorosos de verificação, a fim de salvaguardar a reserva de vagas para as pessoas que, por direito, atendam aos critérios estabelecidos.

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Destaques da Lei 13.146 citados na reportagem (Artigo 2, Artigo 3 e Artigo 4)

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:       (Vigência)

I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III – a limitação no desempenho de atividades; e

IV – a restrição de participação.

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.        (Vide Lei nº 13.846, de 2019)       (Vide Lei nº 14.126, de 2021)

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:

I – acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida;

II – desenho universal: concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva;

III – tecnologia assistiva ou ajuda técnica: produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social;

IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:

a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;

b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;

c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;

d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;

e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;

f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias;

V – comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações;

VI – adaptações razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais;

VII – elemento de urbanização: quaisquer componentes de obras de urbanização, tais como os referentes a pavimentação, saneamento, encanamento para esgotos, distribuição de energia elétrica e de gás, iluminação pública, serviços de comunicação, abastecimento e distribuição de água, paisagismo e os que materializam as indicações do planejamento urbanístico;

VIII – mobiliário urbano: conjunto de objetos existentes nas vias e nos espaços públicos, superpostos ou adicionados aos elementos de urbanização ou de edificação, de forma que sua modificação ou seu traslado não provoque alterações substanciais nesses elementos, tais como semáforos, postes de sinalização e similares, terminais e pontos de acesso coletivo às telecomunicações, fontes de água, lixeiras, toldos, marquises, bancos, quiosques e quaisquer outros de natureza análoga;

IX – pessoa com mobilidade reduzida: aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso;

X – residências inclusivas: unidades de oferta do Serviço de Acolhimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas) localizadas em áreas residenciais da comunidade, com estruturas adequadas, que possam contar com apoio psicossocial para o atendimento das necessidades da pessoa acolhida, destinadas a jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, que não dispõem de condições de autossustentabilidade e com vínculos familiares fragilizados ou rompidos;

XI – moradia para a vida independente da pessoa com deficiência: moradia com estruturas adequadas capazes de proporcionar serviços de apoio coletivos e individualizados que respeitem e ampliem o grau de autonomia de jovens e adultos com deficiência;

XII – atendente pessoal: pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração, assiste ou presta cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência no exercício de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas;

XIII – profissional de apoio escolar: pessoa que exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária, em todos os níveis e modalidades de ensino, em instituições públicas e privadas, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas;

XIV – acompanhante: aquele que acompanha a pessoa com deficiência, podendo ou não desempenhar as funções de atendente pessoal.

CAPÍTULO II

DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO

Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.

§ 1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

§ 2º A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa.

Art. 5º A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.

Parágrafo único. Para os fins da proteção mencionada no caput deste artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.

Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I – casar-se e constituir união estável;

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Art. 7º É dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência.

Parágrafo único. Se, no exercício de suas funções, os juízes e os tribunais tiverem conhecimento de fatos que caracterizem as violações previstas nesta Lei, devem remeter peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

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