Pandemia: Jovens da zona rural de Betim continuam estudos de música virtualmente

Para estudar contrabaixo, Matheus Rios, de 16 anos, precisa pedir, todos os dias, para que os dois irmãos, com quem divide o quarto, saiam dali por pelo menos durante umas três horas. É a forma que o adolescente encontrou para incomodar o mínimo possível enquanto continua os estudos de música em casa, após a paralisação das atividades presenciais da Orquestra Jovem da qual faz parte em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. Sem espaço na casa, a solução é que todos se amontoem no quarto dos pais.
O que poderia ser um momento para toda a família ficar mais próxima tem sido um fardo para Matheus. Com o pai desempregado, a única fonte de renda da família de cinco pessoas, que não conseguiu a aprovação do auxílio emergencial, tem sido os R$ 400 da bolsa que o adolescente recebe do grupo jovem.
“Se um dia meu olho brilhou quando vi que podia me expressar com a música, hoje ela é a minha salvação em todos os sentidos. Além da parte financeira que tem ajudado todo mundo da minha família, é na música que eu consigo me distrair e espairecer a cabeça. Não é só um estudo pra mim;  é a minha forma de continuar vivo mentalmente”, conta.
Atualmente, assim como Matheus, 60 jovens moradores de área rural de Betim que fazem parte da Orquestra Jovem Ramacrisna estão conseguindo continuar suas aulas de teoria musical e prática em instrumentos de cordas, sopro e percussão. Eles trocaram as aulas presenciais pelas online devido ao isolamento social.

Sob a regência do maestro Eliseu Barros, a orquestra, fundada em 2005, reúne alunos entre 9 e 25 anos e está sem aulas desde março. Segundo o regente, que também é o professor, as aulas por vídeo têm funcionado e ajudado os alunos a aprimorarem os conhecimentos. Mas para o maestro, o principal objetivo é oferecer uma atividade para ocupar a rotina e a mente dos adolescentes.
“Enviamos aulas por vídeo no WhatsApp, peço para eles estudarem algumas músicas e pesquisarem sobre alguns compositores. Na maioria das vezes, passamos tarefas e lições de repertório e até gravações. E ao final da semana, eles precisam me enviar um vídeo mostrando a evolução e o repertório daquela semana. Eu assisto e dou um feedback para eles: o que está ok, se a lição está boa, onde tem que melhorar. Como se fosse uma aula normal”, explica Eliseu.
“Claro que a gente sente falta, eles são como uns filhos para mim. A gente saía para ir ao cinema, passava o final de semana em algum sítio, até dinheiro eles me pediam. Essa tem sido a forma de manter eles próximos e de, ao mesmo tempo, conseguir que eles sejam produtivos e não fiquem em casa sem fazer nada. É uma forma de ocupar o dia deles com uma atividade importante”, completa o regente.
Tentando fazer com que sua rotina em casa seja o mais próxima possível da “realidade” que tanto tem sentido falta, Patrícia Araújo, 16, acorda cedo todos os dias e coloca o uniforme da orquestra para ficar em casa. Dividindo o quarto com a mãe e o pai, a adolescente, que mora com dois irmãos, vai para o fundo da pequena casa para tentar não incomodar a família enquanto estuda. Lá, ela até perderia a hora com seu violino, mas precisa dividir o tempo com as lições da escola. Aluna do segundo ano do ensino médio, Patrícia quer estudar música na UFMG. Por isso, mesmo em casa, ela mantém a rotina de estudos. São, em média, cinco horas estudando o instrumento.
“É difícil ter disciplina em casa, mas tento pensar que é para uma coisa maior esse esforço, o importante são as pessoas ficarem protegidas. E eu tenho a oportunidade de continuar estudando, não vou deixar isso passar. Depois que estudo as lições, fico mais tempo tentando gravar e achar um ângulo bom para mandar os vídeos para o professor. Eu, realmente, gasto muito tempo fazendo isso sozinha. Acho que é porque música não se faz sozinha, é um ajudando ao outro. Sinto falta até de escutar o erro de algum colega e poder ajudar de alguma forma”, conta. “Os aplausos também fazem falta, eu me sinto realizada em ver que tornei o momento de uma pessoa melhor quando ela me escuta”, completa a adolescente.

Mesmo com alguma dificuldade de espaço, o celular que já não funciona tão bem e a internet que insiste em falhar, Patrícia se sente privilegiada. O pai e os irmãos não perderam o emprego e ela pode se dedicar aos estudos. No quarto improvisado, a jovem só tem a cama e dois guarda-roupas, que funcionam como uma parede para separar o quarto com a cama dos pais. A vontade era de ter um quarto que coubesse o suporte de partituras. “É bem pequeno aqui mesmo. Mas está tudo bem. Estudar música é um privilégio, meu celular não é o melhor e nem a internet a mais rápida, mas tento honrar e ver que pelo menos eu tenho uma oportunidade para o meu futuro, apesar de que música é muito mais do que um objetivo para mim, é o meu lugar de paz no meio de tanta coisa difícil”, desabafa.
Com todas as aulas suspensas, segundo a vice-presidente do Instituto Ramacrisna, Solange Bottaro, o esforço tem sido auxiliar as famílias. Cerca de 800 famílias de alunos que fazem parte dos cursos oferecidos pela instituição vão receber cestas básicas durante três meses.
“Em termo de conhecimento estamos correndo atrás e ninguém está ficando excluído. As plataformas estão aí para ajudar na parte técnica e na saúde mental, para eles (os jovens) terem uma atividade. Nossa preocupação também é não deixar de assisti-los. Muitas mães são diaristas, os pais são caseiros e estão sem renda. Atendemos famílias bem carentes aqui em Betim. Queremos que tudo isso passe logo”, pontua.
Esse é o caso do Maycon Sampaio, 17, filho de uma diarista, com trabalho reduzido nos últimos meses. A família do adolescente tem recebido uma cesta básica no valor de R$ 150 e, além disso, o que tem ajudado o rapaz, a mãe e os irmãos é a bolsa que ele recebe no valor de meio salário mínimo. O jovem faz parte da orquestra há um ano, estudando piano.

“Minha mãe fica chateada em precisar do dinheiro da bolsa, porque eu estava juntando para comprar um computador, mas eu não me importo. As pessoas ficam preocupadas com a questão financeira, mas eu acho que a saúde é o mais importante. Para mim é mais importante ficar em casa e proteger as pessoas que eu amo. Falta de dinheiro eu estou acostumado e sempre nos viramos, sempre dá certo no final. Quem preocupa com crise financeira é quem tem dinheiro já”, desabafa.
Maycon está no terceiro ano do ensino médio. A ideia era realizar a prova do Enem neste ano, mas, mesmo com a indefinição da data do teste, ele já decidiu que em 2020 não tem como fazer. Ele queria prestar vestibular para psicologia, agora o foco é na música.
Para praticar as lições online, o adolescente precisa apoiar o celular nos livros para ler as partituras e gravar a lição da semana para o maestro. Mas sabe que o esforço será recompensado.
“É difícil, porque não sei se o professor consegue ver se a minha postura está correta e eu demoro mais tempo do que se tivesse alguém do meu lado ensinando. O celular é velho e trava também, mas a gente trabalha com o que é possível no momento. Eu não me sinto preparado para uma prova agora, então vou me dedicando na música e aproveitando agora que tenho tempo para estudar e me aperfeiçoar. Antes ficava com vergonha de apresentar em público, agora o que mais quero é me apresentar para uma multidão. Estou esperando esse momento”, ressalta Maycon.
Fonte: O Tempo